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quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24280: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte VI: Sexo, álcool e amuletos... A maldição ou a premonição do Amílcar Cabral ?..."Só nós somos capazes de destruir o Partido" (Boké, Guiné-Conacri, finais de 1970)


Guiné-Bissau (sic) > PAIGC > s/l > Março-abril de 1974 > Mulher com criança /Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 29 - Life in the Liberated Areas, Guinea-Bissau - Woman with child - 1974.tif

Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)






1. A seguir à invasão de Conacri por tropas portuguesas e forças da oposição ao governo de Sékou Touré, em 22 de novembro de 1970 (Op Mar Verde), Amílcar Cabral (AC) reuniu as cúpulas do PAIGC em Boké, na Guiné-Conacri, próximo da fronteira sul com o território da então Guiné Portuguesa, em data que não podemos precisar mas sabemos, pelo testemunho de Luís Cabral (LC) ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 1984, 464 pp.), que foi ainda em 1970, por volta do final desse  ano. (*)

AC aproveitou para fazer o balanço da "bárbara agressão do inimigo contra a capital da República da Guiné", segundo o relato do seu mano, LC (pág. 373).

Difícil para ambos  era compreender "a traição de muitos dos principais colaboradores do presidente Sékou Touré" (sic) (pág. 374). 

Naturalmente o AC não revelou,  aos seus  colaboradores mais próximos,  as tremendas dificuldades  (económicas, politicas,  sociais, etc.) por que estava a passar a Guiné-Conacri nem ele alguma vez denunciou a natureza ditatorial do regime de Sékou Touré. Obviamente, não iria cuspir na sopa nem dizer mal dos seus hóspedes.... e aliados. 

Amílcar Cabral (e o seu estado-maior) estava nas mãos do "camarada" Sékou Touré (em relação ao qual, de resto, havia um temor reverencial, visível na maneira como o LC se  referiu a ele da primeira vez que o conheceu, à distância, chegando na sua viatura presidencial ao aeroporto da capital).

Mas não deixou, o AC,  de avançar com a sua própria teoria espontânea  sobre os riscos que estava a correr o próprio PAIGC, cujas sementes de destruição não eram exógenas (ou seja, vindas do exterior) mas endógenas (geradas a partir de dentro), insistindo repetidas vezes que "só nós" (sic) (...) "estávamos em condições de destruir o Partido" (pág, 375). Uma premonição, quiçá, do seu próporio assassinato dois anos mais tarde, em Conacri, a 20 de janeiro de 1973, e onde a participação do Sékou Touré, como autor moral,  está  ainda por esclarecer, bem como a de dirigentes do PAIGC como o Osvaldo Vieira, primo do 'Nino'.

E contou, o AC, para gáudio geral da audiência,   a história ou a fábula do bode que, numa pequena terra se havia celebrizado pela sua extraordinária capacidade de procriação, até ao dia em que o presidente do município local se apressou a comprá-lo e instalá-lo num estábulo-modelo, promovendo-o a "bode municipal"...

A partir daí, bem comido e melhor dormido, o bode desinteressou-se totalmente das cabras. Quando o seu antigo proprietário, indignado, lhe pediu explicações, face às reclamações do seu novo dono (o presidente do município). o bode limitou-se a responder, cinicamente: "Agora sou funcionário público." (pág. 376).

A mensagem que o AC quis transmitir  aos seus "generais", depois da prova de fogos  que fora, para todos aqueles que  lá estavam, a invasão de Conacri e a tentativa de derrube do regime de Sékou Touré, era clara: ninguém nos destrói,  a partir de fora, a começar pelos "tugas", se continuarmos de mãos dadas a certar fileiras... Mas nós podemos destruir-nos uns aos outros...

Foi nesta reunião de Boké que apareceu, pela primeira vez, a figura do Partido-Estado. Foi criado o Conselho Superior de Luta no seio do qual era eleito o Conselho Executivo da Luta (pág. 377). Foi também nesta reunião que passaram a fazer parte das Forças Armadas, "as forças regulares - o Exército Popular, a Marinha Nacional e, mais tarde, a Aviação Militar" (pág. 378). Por seu lado, "a Guerrilha e a Milícia foram juntas numa única organização, as Forças Armadas Locais (FAL)", cabendo a sua direção ao Comité Nacional das Regiões Libertadas (sic).

E chegamos ao ponto que nos interessa. No final da reunião, o AC punha mais uma vez o dedo na ferida, manifestando as suas reiteradas preocupações com a "vida pessoal dos quadros e dirigentes do Partido" (pág. 378).

Escreve o irmão, LC:

"Sei bem quanto era doloroso para o Amílcar ter de abordar sempre esta questão delicada cuja origem nascia do comportamento de alguns dos dirigentes da luta" (Negritos nossos)...

E o LC exemplifica, com algum prurido, duas condutas altamente perniciosas para um partido que se pretendia "libertador": 

(i) "o consumo exagerado da bebida alcoólica" (pp. 378/379); 

e (ii) a prostituição, o assédio sexual, a poligamia (pp. 380/383), 

e (iii) implicitamente a cultura do "cabra-macho"... (Claro que ele nunca usa as palavras prostituição, assédio sexual e cabra-macho..).

As questões do álcool e do sexo eram extremamente incómodas e até fracturantes num  "partido revolucionário", de inspiração marxista, como o PAIGC, que se queria exemplar, frugal, puritano, impoluto. 

Os dirigentes e os quadros sabiam quem eram os visados pelas palavras de AC. Um deles seria o Osvaldo Veira, grande apreciador da "água de Lisboa", acrescentamos nós. 

No caso do álcool, LC conta que havia dirigentes que se davam ao luxo de ter os seus "furadores" privativos (!) para extraírem o vinho de palma, bebida que rareava no mato tal como as bebidas alcoólicas que eram importadas (e disputadas em Conacri).

A questão da "violência sexual" (outra expressão que nunca é usada, por falso moralismo) era outro grave problema que já vinha de trás. Diversos "senhores da guerra" haviam sido denunciados, julgados e condenados à morte, em Cassacá, no I Congresso do PAIGC, em fevereiro de 1964, acusados de brutais abusos sexuais e atrocidades para com a população, e nomeadamente para com as  raparigas e outras mulheres jovens (mas também contra os que os que se opunham a estas práticas horrendas). 

LC só volta a referir a persistência deste problema por ocasião da reunião de Boké, em finais de 1970.  Isto significa que ele nunca fora resolvido ao longo daqueles anos todos...

"Todos os homens normais gostam de mulheres, dizia ele [ o Amílcar Cabral] (...). No auge do seu desespero em ter de abordar esta questão uma vez mais, o Amílcar acrescentou, elevando ligeiramente a voz: 'Se pensam que são mais machos do que nós, estão enganados, se quiserem podemos ir ao quarto ao lado e fazer a experiência! Temos as nossas mulheres, a nossa família, e sabemos a responsabilidade que nos cabe nesta fase da vida do nosso povo`".(...) (pág. 382). 

O que estava em causa era a cultura, então dominante no seio do PAIGC, do "cabra-macho", de peito feito às balas, de "peito vermelho", aguerrido, corajoso, mas também violento, machão, predador sexual...

Umas terceira preocupação do AC (e do LC) era o uso e abuso de amuletos, já abordado nas pp. 166/167. LC revela que os dirigentes do PAIGC, no mato, "tinham sempre um combatente muito jovem, que transportava,  num saco, os variados amuletos a que cada um tinha direito, dada a sua condição de chefia" (pág, 166). 

No caso do 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate,  sem o seu arsenal de amuletos, e de pelo menos dois ajudantes (!),  que os carregavam, além de um bigrupo reforçado,  segundo o testemunho (suspeito) do Bobo Queita (que não gostava dele, e ainda mais depois do golpe de Estado de 14 de novembro de 1940).    [ In: Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita". Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197.)

O AC, de formação católica, filho de ex-padre e professor primário (todavia, sexualmente muito promíscuo, com muitos filhos de várias mulheres), não apreciava também estes "aspectos menos racionais" do comportamento dos seus homens... Mas teve que engolir este e muitos  outros sapos (como, por exemplo,  a "mutilação genital feminina" praticada pelos povos "islamizados" da Guiné: não me lembro de ele alguma vez se ter pronunciado, ou pelo menos escrito, sobre este problema, ele que, de resto,  era pai de duas meninas, filhas de uma portuguesa... que foi alegadamente o "amor da sua vida").

"O amuleto - mezinho, como lhe chamávamos - era uma fraqueza que foi transformada em força pelo Partido" (pág. 166). Quando ainda não havia armas para se defenderem, "o Amílcar entregava-lhe(s) o dinheiro necessário para mandar fazer o mezinho - algumas citações do Corão, escritas em caracteres árabes" (...), amuleto que depois era "cuidadosamente forrado de cabedal, e que tinha a virtude de reforçar no combatente a confiança em si próprio, trazendo-lhe a confiança psíquica indispensável ao bom cumprimento da sua missão (pág. 167).

Umas páginas à frente, LC conta a história caricata de um grupo de estrangeiros, o sociólogo sueco Rolf Gustavson e uma equipa de cineastas e fotógrafos franceses, constituída por Michel Honorim, Giles Caron e Michel Carbeau" (pág. 385). Os franceses vinham do Biafra e queriam ver cenas de guerra e sangue...

Isto passa-se entre Farim e Jumbembem, quase nas barbas das NT. Face ao risco de serem apanhados por uma emboscada das tropas portuguesas, LC deu ordem à escolta, comandada por Bobo Queita, para fazer uma "retirada forçada" até à fronteira... Não tendo nada de interessante para filmar (nem sequer umas tabancas em ruínas, carbonizadas pelo napalm dos colonialistas... ), "o chefe da equipa francesa disse em voz alta que éramos um bando de mentirosos" (sic).

Apesar da desculpa do cansaço físico e da tensão acumulada, o LC é obrigado a ameaçar confiscar-lhe as películas há utilizadas. Resultado: 

"Do documentário que devia ser feito das filmagens de Michel Carbeau, pelo realizador Michel Honorim, chefe da equipa, nunca tivemos notícias" (pág. 387). 

Restou o fotógrafo Gilles Caron que terá feito, mesmo assim, algumas belas imagens dos sítios por onde passou...

Destes (e doutros nomes que andaram pelas "áreas libertadas" a documentar a luta do PAIGC) há escassíssimas referências na Net: vd. Journal of Film Preservation, 77/78, october 2008.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24261: Palavras fora da boca (3): As nossas santas ingenuidades... A propósito da violència do PAIGC nas "áreas libertadas" (Luís Cabral / Luís Graça / António Graça de Abreu / António Rosinha / Cherno Baldé)


República da Guiné > Conacri > c. 1960  > Dirigentes do PAIGC, junto ao Secretariado Geral: da esquerda para a direita:  (i) Osvaldo Vieira, (ii) Constantino Teixeira, (iii) Lourenço Gomes e (iv) Armando Ramos. 

O Osvaldo Vieira (1938-1974), também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra), terá morrido, de doença,  dizem,  por complicações pós-operatórias, em  31 de março de 1974 (não num hospital da ex-URSS, mas na base do PAIGC, em Koundara, Guiné Conacrii), e  sobretudo com a terrível suspeita de ter estado implicado na conjura contra Amílcar Cabral... Era primo do 'Nino' Vieira... Ironia(s) suprema(s):  repousam os dois, o Amílcar e o Osvaldo, lado a lado, na Amura; e o seu nome (e não o de Amílcar) foi dado ao Aeroporto Internacional de Bissau, em Bissalanca...

Recorde-se que o "estado-maior" do PAIGC instalara-se em Conacri em maio de 1960. A foto deve ser do ano de 1960, já que em janeiro de 1961 Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira faziam parte do grupo de futuros históricos comandantes, mandados por Amílcar Cabral para a  Academia Militar de Nanquim, na China, para receber treino político-militar. Uns meses antes, em agosto de 1960. Amílcar Cabral em pessoa tinha-se deslocado a Pequim para negociar o treino dos quadros do PAIGC na Academia Militar de Nanquim.  

No grupo de quadros do PAIGC que vão nesse ano para a China incluem-se, além dos supracitados Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira, os nome de João Bernardo Vieira ['Nino'], Francisco Mendes, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Vitorino Costa [irmão de Manuel Saturnino],  Domingos Ramos [irmão de Pedro Ramos e amigo do nosso Mário Dias], Rui Djassi, e Hilário Gomes.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05222.000.084 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)


1. Seleção de comentários ao poste P24232 (*)... A questão da "violência" (policial ou militar) no TO da Guiné, antes, durante e depois da guerra, dá pano para mangas... Mas está longe de estar (bem) documentada no nosso blogue (Pijiguiti, Samba Silate, Cassacá, chão manjaco, Conacri, Boé, Bambadinca, Cumeré, Porto Gole...).

É um tema "delicado", para não dizer "tabu" e "fracturante",  para um blogue de antigos combatentes. Está mal documentada de um lado e do outro do conflito.

Por exemplo, do lado do PAIGC:  "A luta foi difícil, mas nunca pensei em abandonar. Quanto aos desertores, a lei do Partido exigia que fossem executados… Era a lei militar” (p. 67) (**, disse  Bobo Keita  no livro de Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita /Edição de autor, Porto, 2011, 303 pp., posfácio de António Marques Lopes) .

Nas suas memórias ("Crónica da Libertação", Lisboa, o Jornal, 1984) (memórias que vão até ao assassinato do líder do PAIGC, em Conacri, em 20 de janeiro de 1973), Luís Cabral também não esconde que o Partido (sic) resolveu graves conflitos internos com execuçóes sumárias e públicas, como por exemplo, em  fevereiro de 1964, em Cassacá (pág. 190).  sobre

Nem esconde também a violência que era exercida sobre as populações civis sob controlo do PAICC (mas também sobre combatentes e até dirigentes), como no caso do Morés, em fevereiro de 1966. Violència nas suas diversas formas (incluindo a violència sexual)...

 Violência essa que escapa à "santa ingenuidade" de todos os observadores estrangeiros ocidentais  que são convidados a "visitar as áreas libertadas", dos nórdicos (suecos, noruegueses, holandeses) aos italianos e franceses... para não falar dos oriundos dos países "não-alinhados",  os do "bloco soviético", sem esquecer os da China e de Cuba...Todos (a começar pelos médicos cubanos, talvez os mais cínicos)  levavam "vendas nos olhos" ou "óculos cor de rosa", como é normal em situações de conflito em que  se polarizam as posições... Ontem como hoje, a verdade é sempre a primeira grande vítima dos conflitos armados... 

Claro, neste caso, nem o governo português de então nem o Amílcar Cabral convidavam observadores independentes (a começar pelos jornalistas) para ver o que se passava no "terreno"...  Mas ambos sabiam da enorme importância que tem/tinha a "propaganda"... E nessa matéria Amílcar Cabral era uma mestre: foi muito mais hábil que os nossos "cabos de guerra", do Arnaldo Schulz ao António Spínola, para não falar do Bettencourt Rodrigues (que foi mais um erro de "casting")... De qualquer modo, temos que ter em conta a conjuntura histórica, geopolítica, da época, muito mais favorável ao discurso anti-colonialista e anti-imperialista...

(i) Tabanca Grande Luís Graça:

"O Amílcar Cabral era bom de mais", dizia o Osvaldo Vieira...

(...) Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos (***)  tiveram no Morés, o Luís Cabral (LC) não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: 

“Quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo

O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265). (Negritos nossos)

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

19 de abril de 2023 às 13:08

(ii) Antonio Graça de Abreu:

Afinal a "disciplina rigorosa" exercida pelo PAIGC sobre a população pobre das "regiões libertadas": Palmatoadas, mãos a sangrar, violência primária sobre um humilde povo que apenas desejava pão e dignidade, e viver em paz!

Posso imaginar o sofrimento de Amílcar Cabral, resguardado na outra Guiné-Conacri, distante das "regiões libertadas". No aparente conforto, no seio dos seus correligionários, em Conacri. Se Cabral não foi ingénuo, morto pelos seus próprios homens, em Conacri, foi o quê?

19 de abril de 2023 às 14:38

(iii) Cherno Baldé:

Eu li o livro "Crónicas da libertação" do Luós Cabral em 1989, precisamente quando estava de férias em Lisboa, mas, se a memória não me falha,  o cenário que o LC descreveu foi de um grupo de pessoas (civis) que eles encontraram amarradas com cordas, estando alguns com os membros inchados e que ele teria mandado desamarrar e, tendo confrontado o caso as pessoas presentes no local, disse que ninguém teve coragem de indicar quem tinha sido o mandante que, tudo indicava, seria o Comandante Osvaldo Vieira que reinava em chefe absoluto na zona Norte. 

No fim, o LC afirmava, no livro, que ainda não tinha chegado o tempo para se falar de todas as verdades da luta do PAIGC. O livro tinha sido publicado em 1984, salvo erro.

Levar a cabo uma guerra como o fez o PAIGC por mais de 10 anos não é uma brincadeira de crianças nem de ingénuos ou inocentes, por isso e para que a luta não resultasse num redondo fracasso, foi preciso combinar a "bondade" do Amílcar Cabral com a dureza vs crueldade do Osvaldo Vieira e no final, esta última acabou por prevalecer, da mesma forma como acontece com todas as boas intençóes. 

Como disse um filósofo inglês do século XIX , "Tentem fazer o bem e as forças do mal prevalecem"

19 de abril de 2023 às 16:46
 
(iv) António Rosinha:

António Graça de Abreu, a maioria dos dirigentes dos partidos ganhadores das primeiras independências dos anos 60 em África, ou se liquidaram uns aos outros, ou escaparam a atentados, sendo eles a matar os outros.

Os que foram assassinados, tal como Amílcar Cabral, não foi por serem "ingénuos". Eles apenas arriscaram, deram o peito às balas, só que Cabral arriscou mais que qualquer outro.

Pela sua condição de ser visto como um cabo-verdiano pelos guineenses, que facilmente ficou "desarmado" quando Spínola pôs em prática a política da Guiné para os guinéus, foi com muito risco consciente que ele corria, tanto que ele mencionou as traições a que estava sujeito, dentro do próprio partido.

Mas sobre Cabral e outros "não indígenas" das ex-colónias portuguesas que optaram por formar os tais partidos ganhadores, tiveram a sua lógica anti-colonialista e simultaneamente anti-salazarista, mas haveria muito a escrever sobre eles, mas seria também muito chato.

20 de abril de 2023 às 00:59 

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Cherno, só agora, em 2023, li o livro do Luís Cabral, "Crónica da Libertação", edição de "O Jornal", Lisboa, 1984, 464 pp. Livro brochado, uma encadernação horrível, que se desconjunta toda. A editora já não existe, o livro é difícil de encontrar, a não ser talvez nos alfarrabistas e, claro, nalgumas bibliotecas públicas.

A cena da violência contra um grupo de população civil na "base central" do Morés encontra-se descrita nas pp.265/270. Isto passa-se por ocasião da visita, à região Norte, do realizador italiano Piero Nelli, na 1ª quinzena de fevereiro de 1966: vd. pp. 259/270. (É o autor do filme "Labanta, Negro!", premiado no Festival de Veneza desse ano.)

O Osvaldo Vieira (OV) era o responsável da Frente Norte (pág. 259). O comissário político da Inter-Regiáo do Norte era o Chico Mendes, membro do Bureau Político (tal como o Luís Cabral, LC (pág. 260). O Osvaldo trabalhou na Farmácia Moderna (diretor técnica, a dra.Sofia Pomba Guerra) (pág. 260). O Inocèncio Kani (IK), o futuro assassino de Amílcar Cabral (AC), era o "responsável da base" (pág. 267): encontrava-se pela primeira vez com o LC, tendo mostrado "um comportamento um tanto reservado". 

LC também conheceu dessa vez o Simão Mendes, enfermeiro no tempo colonial, responsável da saúde (que viria a seguir num bombardeamento à base).

Numa visita à base, o OV diz ao LC que ali teve que se impor "uma disciplina rigorosa, para neutralizar o mal que o inimigo podia fazer-lhes, partindo dos vários quartéis da região"...

É nessa visita, já depois das filmagens da fracassada emboscada, em 11/2/1966 (cito de cor), às NT na estrada Mansoa-Mansabá (que estava a ser alcatroada) e que fora preparada para "italiano ver e filmar"), o LC deu conta da existència de um pequeno grupo de civis que tinham sido maltratados:

(...) "Num pequeno largo da base, estava o Inocèncio e mais alguns camaradas de um lado, enquanto que do outro vi aproximadamente uma dezena de de homens e uma mulher com o filhinho no braço" (pág. 265).  

OV explicou "que se tratava de prisioneiros, apanhados quando se dirigiam aos quartéis inimigos da região" (sic).

"Olhando com mais atenção para os homens, verifiquei que tinham as mãos inflamadas", chamando a atenção do OV para isso. 

"Respondei que a lei estabelecida na inter-reiáo era essa e que a a mulher só tinha escapado porque tinha de carregar o filho e não podia por isso receber as palmatoadas" (sic).

O LC diz que ficou "muito impressionado com esta cena" e esperou a oportunidade para falar com o OV. Ele estava "absolutamente seguro" de que o AC "nunca daria o seu acordo a tal forma de proceder" (pág. 265)...

O OV "insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais", e que "estavam perdidos" (...) "se não agissem com dureza" tanto em relação aos combatentes como á população civil...

Na pág. 268, LC conclui que "a disciplina em Morés era (...) imposta em grande parte pela força"... e que o responsável da base, o IK, era criticado, por todos, pela sua dureza, "que muitas vezes chegava a atingir a malvadez"... Mas ele beneficiava da "confiança total" do OV... (pág. 268)...

Enfim, chega de citações, Cherno, e tira as tuas conclusóes. (Nada disto, claro, transparece no filme, de propaganda, do camarada Piero Nelli.)

19 de abril de 2023 às 22:48
 
(vi) António Graça de Abreu:

Também fui ingenuamente ingénuo. Eis a Prova, escrito há quarenta e sete anos::

Pequim, 25 de Outubro de 1977

Nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras, secção portuguesa, o camarada Fu Ligang trabalha na mesma sala que eu, na mesa mais pequena, à minha direita. É uma espécie de meu secretário. O Fu estudou português em Macau, numa leva de 60 ou 70 jovens chineses que em 1964 a República Popular enviou quase secretamente para Macau, a fim de estudarem a língua de Camões.

O Fu Ligang adquiriu excelentes conhecimentos de português. Teve um professor que nunca esqueceu com o nome de Júlio Pereira Dinis. Responsável e trabalhador -- creio que é membro do Partido Comunista da China --, hoje de manhã perguntou-me:

“Então, camarada António, está a gostar de viver em Pequim, está satisfeito com a China que veio encontrar”?

Assumindo os meus antecedentes meio comunistas, na versão meio maoista, ainda com meia convicção política, respondi-lhe mais ou menos nos seguintes meios termos:

“Sim, vim encontrar um país a crescer, um povo simpático e tenho boas condições de vida e de trabalho aqui em Pequim. Depois, estou a dar o meu pequeno contributo para ajudar a construir o socialismo, para a criação do homem novo, para a construção de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor”.

O Fu Ligang ouviu o meu discurso impassível, um levíssimo sorriso a aflorar nos lábios e, passados uns longos segundos, olhou-me pelo canto do olho e disse-me, em excelente português:

“O camarada é ingénuo.”

E não houve mais conversa. Durante o resto da manhã debruçámo-nos sobre os textos a traduzir e a corrigir.

O Fu deve ter razão. Nestes meus quatro anos de Pequim, vou tentar entender e digerir a minha ingenuidade.

20 de abril de 2023 às 13:34

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Subtítulo / Itálicos / Negritos: LG] (****)
___________



(****) Último poste da série > 26 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24252: Palavras fora da boca... (2): "Prós insultos não há contemplações nem indultos"... e também: "Quem não tem poilão, acolhe-se à sombra do chaparro"... Proverbiário da Tabanca Grande, 5ª edição revista e aumentada

quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24178: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte V: O "making of" do "Labanta, Negro!", um filme italiano, de Piero Nelli (1926-2014), a preto e branco, de estética tardo-neorrealiista, e que serviu que nem uma luva à propaganda do PAIGC


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 38m 28 s > A despedida do realizador italiano Piero Nelli


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 58 s > 11 de fevereiro de 1966 > 6h30 > Partida para a emboscada às obras da TECNIL na estrada Mansoa-Mansambá


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 31m 21 s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 06s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 58s >  A emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 31s >  Panfleto, manuscrito, convidando os militares portugueses  à deserção: "Amigo desconhecido: Com este papel podes estar seguro do teu bom acolhimento em caso de deserção". Assinado: PAIGC.


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 37m  21s > "Quartel-General do Norte"> 13 de fevereiro de 1966 > As despedidas...  À  italiana?

Fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2014), "Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43''). O filme ganhou o prémio do melhor documentário do ano no Festival de Veneza. Filmado a preto e branco, nas zonas controladas pelo PAIGC  (no Oio), na então Guiné portuguesa, de 2 a 15 de fevereiro de 1966, é um documentário de estética tardo-neorrealista, que o partido do Amílcar Cabral soube explorar habilmente como "arma de propaganda".  

Segundo a CECA (2014, pág. 372) (*), "o ano de 1966 foi considerado pelo PAIGC como o ano da informação, tendo desenvolvido uma intensa e bem orientada campanha de propaganda 'visando esclarecer a opinião pública mundial com testemunhos irrefutáveis'. Para tal estiveram no Boé e em Quitafine vários jornalistas e cineastas africanos, franceses, americanos, ingleses, italianos, holandeses e soviéticos que produziram artigos e filmes - documentários sobre aspectos da luta e do nível de realizações sócio-económicas do PAIGC, que mais tarde deram origem a publicações nas editoras francesa 'Maspero'
e americana 'Africa Report«, entre outras".

Por lapso, a CECA não menciona a visita desta equipa italiana, à região do Oio, o que nos parece lamentável... No nosso blogue, já tinha havido duas anteriores referências a este filme, talvez o mais famoso dos que se fizeram durante a guerra  (**).



"Labanta,Negro!" > O filme serviu objetiva e intencionalmente a propaganda do PAIGC:  foi apresentado pelos autores como um "diário de paz e de guerra" (sic), filmado entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, tendo por protagonistas os guerrilheiros da "província portuguesa do ultramar" da Guiné Cabo-Verde (sic, como se fora um só território)... O documentário (que não tem qualquer perspetiva crítica, é claramemnte "engagé", deliberadamente "militante" ou "não independente") foi, além disso, acolhido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, de 16 a 21 de junho de 1966, "como prova testemunhal sobre a situação" da colónia da Guiné Cabo-Verde (sic).

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de notas avulsas de leitura do livro "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (**):

O documentário "Labanta, Negro!", filmado na região do Oio, entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, por dois cineastas italianos 

No início de 1966, Luís Cabral (LC) está em Dacar, é o responsável pela supervisão da Frente Norte, cabendo-lhe a missão de tentar melhorar as difíceis relações do Senegal com o PAIGC, ao tempo em que os homens de Amílcar Cabral (AC) ainda não tinham “livre trânsito” no pais de Senghor, estando acantonados apenas em Dacar e em Ziguinchor.

É então contactado pelo cineasta italiano Piero Nelli, que queria fazer um documentário sobre a “luta de libertação”. Vinha acompanhado do seu operador de câmara Eugenio Bentivoglio (pág. 259).

LC, depois de contactar o irmão, AC (não fazia nada sem o seu consentimento) e o Osvaldo Vieira, comandante militar da Frente Norte, dirigiu-se à base do Morés, acompanhado dos dois italianos. Eram três dias de viagem, com cambança (sempre perigosa) no rio Farim…

Ali, no Oio, era o chão dos oincas, “mandingas e islamizados” (sic) (pág. 260), com uma forte tradição de resistência contra o colonizador: recorde-se as “campanhas de pacificação” do capitão Teixeira Pinto, o “capitão-diabo”, em 1913-1915, por exemplo.

Em 1962, “o ano da grande repressão” (sic), as populações do Morés, cercadas pelas tropas coloniais, e sem armas para se defenderem, tiveram de se refugiar no Senegal. A “base central” do Morés era, por isso, mítica para o PAIGC (e de algum modo também para as tropas portuguesas).

A base, que o LC conhecia pela primeira vez, “estava situada num terreno irregular, onde pequenas saliências aqui e declives ali ofereciam uma certa proteção contra os bombardeamentos” (pág. 261).

O Morés estava rodeado de “oito quartéis” do inimigo, um dos quais Farim, apenas separado pelo rio do mesmo nome. Chico Mendes era o comissário político. Osvaldo Vieira o comandante militar da região (e aquele que LC conhecia melhor, dos tempos de Bissau: desde a adolescência, trabalhava na Farmácia Moderna, de que era diretora técnica a dra. Sofia Pomba Guerra, conhecida opositora do regime salazarista). O Inocêncio Cani, de etnia bijagó, o futuro “matador” de AC, era o responsável pela base. LC encontrou-se com ele pela primeira vez. Notou que, em relação a ele, LC, o Cani mostrou “um comportamento algo reservado” (pág. 261). Também conheceu nessa altura o Simão Mendes, “responsável da saúde” (pág. 262), que viria, nesse ano, a ser vítima mortal de um bombardeamento da base.

Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos tiveram no Morés, o LC não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: “quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo. O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265).

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

Nas páginas 262-264, LC descreve, com algum detalhe e sentido de humor, as peripécias das filmagens do futuro documentário italiano “Labanta, Negro!”…

O Pierro Nelli (1926-2014) era um “antigo partisan das guerrilhas antifascistas”, na Itália de Mussolini e da ocupação nazi. Tivera conhecimento da luta do PAIGC, “ocasionalmente”, em Dacar. E estava agora entusiasmado com o que via nas florestas do Oio, e “altamente emocionado” pelo interesse e carinho com que o recebiam nesta visita. Viria a tornar-se “um admirador do nosso Partido” (pág. 262).

LC explicou-lhe que “na nossa terra não tínhamos montanhas para nelas instalar bases de guerrilha”… e que o Amílcar, seguramente (en)levado pelo “mito “ da Sierra Maestra, da ilha de Cuba, “dissera desde o início da luta que as nossas florestas seriam as nossas montanhas” (pág. 262).

De qualquer modo, ao deslocar-se na floresta o duo italiano tinha sempre alguém que ia à sua frente a assinalar ou remover os obstáculos, um tronco caído, uma cova mais funda, uma pedra, um ramo de árvore mais inclinada…

No plano de filmagens estava incluída uma sequència de guerra: “o encontro com as forças inimigas ia ser filmado, na estrada Mansoa-Mansabá, cujos trabalhos de alcatroamento avançavam com muita dificuldade, sob a protecção do exército colonial”.

Os cineastas ficaram a cem metros da estrada. Chegaram antes do romper do dia. Ficaram instalados “de maneira a ter bem claro na objectiva da câmara o ângulo onde deviam actuar os nossos camaradas já emboscados” (pág. 263).

A tropa, “apoiada com carros de assalto” (sic) (deveriam tratar-se de simples autometralhadoras Daimler, coisa que o LC não sabia distinguir), chegou primeiro que os operários, os técnicos e as suas viaturas (a empresa deveria ser a TECNIL onde, mais tarde, em 1977 irá trabalhar, como topógrafo, o nossso camarada António Rosinha).

Por inexperiência ou azar (para não dizer “nabice”), o operador de câmara ficou virado para oriente, donde vinham os primeiros raios de sol: 

(…) “Os reflexos desta perfurante luminosidade na objetiva da câmara cinematográfica fez com que ela fosse localizada pelo destacamento inimigo alguns segundos antes dos primeiros tiros da emboscada cuidadosamente preparada pelos nossos combatentes” (pág. 263).

Face ao intenso fogo que, de imediato, se desencadeou, de um lado e do outro, os cineastas tiveram que se retirar “precipitadamente” do local, “só tomando o fôlego quando se sentiram fora do alcance das armas inimigas” (pág. 264).

Na precipitação da retirada, o realizador perdeu o seu magnetofone, mas um dos guerrilheiros voltou depois ao local para o recuperar.

O aparelho registara os sons dos tiros produzidos durante a confrontação. E o operador também “registara imagens ao acaso, durante a retirada”, inadvertidamente, com a câmara ligada… É uma das sequências mais notáveis do filme de 38 minutos: “uma sequência plena de vida e de arte”, acrescenta o LC.

O operador de imagem, Eugenio Bentivoglio, não se cansava, já no regresso à base, de falar do medo, “la grande paura”, que experimentara, o maior de toda a sua vida, enquanto o realizador se mostrava mais calmo: pertencente a uma geração mais velha, conhecera a guerra e os seus horrores.

E num comentário, algo “naif” mas não menos fanfarrão, o LC (que nunca foi grande combatente, diga-se de passagem) acrescenta: a seu lado (do Piero Nelli), e ainda debaixo de fogo, “o comandante Joaquim Furtado (…) chamava a sua atenção para a beleza dos patos selvagens que esvoaçavam a alguns metros do lugar onde passavam, afastando-se do perigo iminente que vinha do lado da estrada” (pág. 264).

No dia seguinte, e para despedida do LC e dos seus amigos italianos, tudo acabou em bem, com um “grande comício” em que tomaram a palavra o Osvaldo Vieira e o Chico Mendes (tido por grande orador).

O Piero Nelli “chorou” ao deixar o Morés, garante o LC. E mais disse: que com o seu filme, o realizador italiano “ ia procurar ser o mais fiel possível, para transmitir ao espectador europeu que, como ele, nada sabia sobre a nossa luta, os sentimenmtos que vivera tão intensamente no nosso pais “ (pp. 266/267).

E arremata o LC:

 “Parece que conseguiu. O seu filme, ‘Labanta Negro’, título de um poema do cabo-verdiano Dambará (***), poeta das ilhas, recitado em Morés por um dos alunos, foi premiado com o Leão de Ouro do Festival de Veneza, como o melhor documentário do ano” (pág. 267).

Visto à distância de mais de meio século, parece ser um vulgar filme de propaganda, de estética tardo-neorrealista, que já não faz chorar ninguém…O realizador é incapaz do necessário distanciamento afetivo e do espírito crítico que deve ter o cinema documental… E a voz “off” do narrador, monocórdica, parece a de um (mau) locutor de serviço.

2. 
 O filme "Labanta Negro" (1966) (38' 44'')  em italiano, com falas em crioulo, está disponível no You Tube, na conta Archivio Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico, desde 21/03/2019.

Ficha técnica: Labanta Negro! 

Cópia integral: https://goo.gl/Q7PCy2 

Realização: Piero Nelli. 

Produção: Reiac Film, Itália. 

Ano: 1966. 

Duração: 38' 44''.

Aconselha-se a ver o documentário com as legendas em italiano, que são geradas automatiocamente (vd. definições). E uma vez que a narração é muita rápida, é preferível optar por uma reprodução mais lenta).

Sinopse (adapt. do italiano por LG): 

Em crioulo "Labanta, Negro!" (1966) significa "Levante-te, negro!". O filme, pensado como um diário, quer ser um testemunho da luta pela independência da colónia portuguesa da Guiné, a partir dos "territórios já libertados" (caso do Morés, por exemplo), onde a guerra e a actividade militar coexistem com a criação das primeiras estruturas de uma sociedade civil africana que se organiza na floresta, nas aldeias, nas savanas. 

O filme mostra, entre outras coisas, as "aldeias destruídas pelos bombardeamentos portugueses"  e os restos de um avião, um T6,  abatido em 1963 . 

Algumas sequências são dedicadas a uma reunião do PALGC, onde Luís Cabral intervém sobre a "luta de libertação"; também é registrado o depoimento de Osvaldo Vieira, comandante do Exército do Norte. As imagens de um confronto com uma patrulha portuguesa na estrata de Mansoa-Mansabá, em 11/2/1966, e do posterior regresso dos guerrilheiros à base do Morès (uma dramática sequência entre os minutos 30 e 34) encerram o documentário. 

Este documentário foi recebido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, como prova testemunhal sobre a situação da "província ultramarina portuguesa" da "Guiné Cabo Verde" (sic).

No texto acima, seguimos as memórias do Luís Cabral para sabermos algo mais sobre o "making of" do filme, que teve na altura algum sucesso e contribuiu bastante levar a luta do partido de Amílcar Cabral (AC) ao conhecimento do público europeu, nomeadamente em Itália.  O filme teve alguma projeção, ao ganhar o prémio para o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1966.
___________

Notas do editor:

(*) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 372.

(**) Vd. postes:



(***)  Kaoberdiano Dambará era o pseudónimo literário do poeta, escritor e advogado, cabo-verdiano,  lcenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Felisberto Vieira Lopes (Santa Catarina, Santiago, 1937 – 2020), 


(...) Vieira Lopes/Kaoberdiano Dambará é uma personalidade marcante, única e incontornável da literatura e da advocacia cabo-verdiana. Escolheu-se aqui homenageá-lo apresentando as publicações onde ele assina com o pseudónimo poético revolucionário, escritas em fases marcantes da sua vida: Noti (1964), fase de euforia e de engajamento na luta pela independência; e A saída da Crise não é pelo Anteprojecto da Constituição (1980), fase de desencanto e de combate ao regime de partido único instaurado no país com a independência. (...)

(...) "Noti": Livro de poemas em crioulo, edição do Departamento da Informação e Propaganda do Comité Central do PAIGC, França 1964, com introdução de Ioti Kunta (pseudónimo de Jorge Querido), é uma das obras poéticas mais representativas da poesia engajada na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. (...)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...).


Capa da revista do Expresso, edição de 16 de Janeiro de 1993.

"A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral" (*)

1. Segunda e última parte do artigo de José Pedro Castanheira (JPC), "Quem mandou mandar Amílcar Cabral?" (Semanário "Expresso", edição de 22 de janeiro de 2023, Revista, pp. E|32 - E|37), publicada trinta anos depois da reportagem de 1993 (vd. capa, acima, da Revista do Expresso, de 16 de janeiro desse ano). 


JPC, jornalista e escritor, de 70 anos de idade, dedicou perto de metade da sua vida a tentar  responder à pergunta sobre o "autor moral", o "mandante",  da morte de Amílcar Cabral (AC) e a respetiva teia de cumplicidades . Desde 1993, ele tem explorado quatro hipóteses de investigação, apontando para os presumíveis "mandantes" do crime: 

(i) uma ação do gen Spínola e dos seuseus íntimos colaboradores, na iminência de "perder a guerra":

(ii) uma operação especial da PIDE/DGS, além fronteiras (a semelhança do que acontecera, em 1965, com o gen Humberto Delgado, assassinado com a sua secretária depois de cair numa cilada, em Espanha; 

(iii) uma jogada maquiavélica e antecipada de Sékou Touré, um ditador que sonhava com a "Grande Guiné", e via no Amílcar Cabral um rival de estatura pan-africana;

(iv) o desfecho inevitável da crescente conflitualidade existente no interior do PAIGC, entre os combatentes (guineenses) e a "nomenclatura", dirigente (cabo-verdiana).

Na nota de leitura anterior (**) fizemos, resumidamente, o ponto da situação sobre  o que se sabia sobre uma  eventual participação da parte portuguesa: não há indícios, nem factuais nem documentais, que permitam incriminar quer o gen Spínola (na altura, governador-geral e comandante-chefe da Guiné) quer a polícia política do regime.

Na segunda parte do seu artigo, o JPC explora a informação que ele tem continuado a recolher  sobre o eventual envolvimento de Sékou Touré bem como dos grupos que, dentro do PAIGC, podiam ter razões para assassinar o  seu  líder. 

Sékou Touré tem, contra si, o facto de ter "[recebido] no palácio os assassinos de Cabral ainda o cadáver estava quente, após o que os enviou para a tenebrosa cadeia de Camp Boiro, onde foram interrogados e torturados por forma a alterarem o sentido do seu depoimento — como o testemunhou o cabo-verdiano Alcides Évora (Batcha), convocado para servir de intérprete da polícia de Conacri" (JPC, Revista, E|36).

Dos arquivos de Conacri, o silêncio é total.  O que não admira,  quando se sabe que Sékou Touré, heroi da luta anticolonialista, governou com mão de ferro o seu país, de 1958 até ao ano da sua morte, em 1984.

 JPC também não conseguiu entrevistar Leopoldo Senghor (que suspeitava do envolvimento de Sékou Touré na morte do AC), mesmo munido de uma carta pessoal do então presidente da República Portuguesa, Mário Soares,

Dos franceses (que tudo fizeram, ao que parece, para derrubar Sékou Touré, inimigo fidalgal da França, antiga potência  colonizadora) também não houve luz verde para consultar, como era previsível,   os arquivos  secretos das "secretas", o "Service de documentation extérieure et de contre-espionnage" (SDECE). Idem, por parte da Itália, do Vaticano, etc., com os seus arquivos fechados a sete chaves.

Dois diplomatas da antiga Jugoslávia estiveram nas exéquias do AC, em Conacri, tendo constatado (e relatado) "um largo descontentamento dos ativistas e combatentes do PAIGC" em relação ao seu secretário-geral e líder histórico. 

Agostinho Neto, membro da Comissão Internacional de Inquérito, revelou, por sua vez,  que foram ouvidos cerca de 500 membros do PAIGC, presentes em Conacri, e desses "só 20 se exprimiram abertamente por Cabral".  De resto, parece que toda a gente sabia da "morte anunciada" do AC, em Conacri, exceto os cabo-verdianos... 

Deve-se realçar que tanto as informações dos diplomatas jugoslavos como de Agostinho Neto são de fontes secundárias. JPC cita-os em segunda mão. 

Infelizmente, por outro lado, diz JPC, "dos interrogatórios efetuados pelas  três comissões de inquérito nada se sabe. Muitas das confissões foram  arrancadas sob tortura. As cassetes áudio e/ou as respetivas transcrições desapareceram". Estamos a falar de um total de 465 pessoas!...

E o que é que resultou do apuramento da verdade dos factos e dos implicados na conspiração que levou à morte de AC ?... Houve "43 acusões de participação no golpe, 9 de cumplicidade e 42 de suspeitos. Todos guineenses"...

Como Pilatos, Sékou Touré lavou as mãos  e entregou-os ao PAIGC para fazer um simulacro de julgamento revolucionário e passá-los a seguir pelas armas, "nas regiões libertadas", para lá da fronteira.   

Não se sabe ao certo quantos fuzilamentos é que houve. JPC aponta para um número que parece ser mais consensual entre as diversas fontes: uma centena, não havendo na lista nenhum cabo-verdiano

"Na minha investigação, investiguei 23 nomes, entre os quais o matador, Inocêncio Cani, e os alegados cabecilhas, Momu Touré e Aristides Barbosa", anteriormente libertados por Spínola do Tarrafal.

'Nino' Vieira, entrevistado por JPC em Bissau,  falou da "matança de muita gente". Mas ele sempre desmentiu as insinuações ou suspeitas do seu envolvimento, de que se começou a falar mais abertamente depois do seu golpe militar de 14 de novembro de 1980.  De qualquer modo, na Guiné-Bissau, ainda hoje, há um silêncio sepulcral sobre o caso da morte do AC, enquanto em Cabo Verde o assunto continua a suscitar viva discussão.

JPC tentou, também em vão, recolher depoimentos de membros da Comissão Internacional de Inquérito. Abordou o embaixador de Cuba, em Conacri, Óscar Oramas,  um dos primeiros a chegar ao local do crime: não só confirmou  as más, mesmo péssimas, relações entre Osvaldo Vieira e Amílcar Cabral, como apontou a sua presença na cena do crime, "escondido atrás daquelas árvores" (sic)... 

Mesmo munido de uma carta de Manuel Alegre, amigo do embaixador da Argélia, dos tempos da rádio de ARoel,   Messaudi Zitouni, JPC nunca conseguiu o depoimento deste... 

Também esteve duas vezes com Joaquim Chissano..."Disse-me que reservava o relato para as suas próprias memórias. Até agora só saiu o primeiro volume (...) que termina em 1963". 

Da extensa bibliografia que já se publicou sobre AC (muito mais do que sobre qualquer outro dos líderes nacionalistas  de países como Angola ou Moçambique), o JPC destaca o livro de Julião Soares Sousa ("Amílcar Cabral. Vida e Morte de um Revolucionário Africano", Veja, 2012). Na sua opinião ( e na opinião de outros especialistas), é "a melhor e mais completa biografia" do AC. (Resultou de um trabalho académico do autor, o seu doutoramento em história pela Universidade de Coimbra.)

No capítulo sobre o assassínio do AC, Julião Soares Sousa, que é guineense, diz  não haver "margem para dúvidas": (...) "foi obra de dissidentes do PAIGC, com uma grande probabilidade de ter sido também um grande complô em grande escala, que ultrapassa as fronteiras da Guiné-Conacri" (citado por JPC, Revista, E|37).

JPC cita ainda duas fontes, a seu ver, importantes: o livro-testamento de Aristides Pereira e a série da RTP, "A Guerra", realizada por Joaquim Furtado: o episódio nº 25. emitido em 2012, é inteiramente consagrado à morte de AC. Pedro Pires é um dos muitos entrevistados, e o seu depoimento deve ser tido em conta (mesmo que ele continue, ainda hoje, a manter a sua tese  do complô português). 

Aristides Pereira, sucessor de AC à frente do PAIGC,  entrevistado por José Vicente Lopes ("Minha Vida, Nossa História", Spleen, 2012), "fala sem filtros, com uma clareza e limpidez totais, acentuando de forma porventura definitiva a responsabilidade de um importantíssimo sector da ala guineense na elimição de Cabral" (JPC). Cite-se as suas palavras: 

"Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (e de facto, o não o era: nasceu em Bafatá,  viveu apenas 10 anos em Cabo Verde onde fez o liceu, o que é pouco mesmo numa vida curta de 49 anos...).

Chegados ao fim da leitura do artigo, alguns leitores dirão que a montanha pariu um rato... No meu caso (não li o livro de JPC, publicado em 1995), fico com as ideias mais arrumadas. O autor fez um trabalho de investigação jornalística, sério, intelectualmente honesto, com rigor e método. Não é um trabalho académico. Mas tem 4 hipóteses de investigação, todas elas verosímeis.  

As duas primeiras, envolvendo a parte portuguesa, perdem hoje força, por falta de provas. Não se trata de "limpar a honra" dos portugueses (os militares e a polícia política), mesmo que entre os cabecilhas do matador, Inocêncio Cani, estejam dois ex-tarrafalistas, Momu Touré e Aristides Brabosa. As hipóteses iii) e iv) ganham força, nesta e noutras investigações mais recentes como a do cabo-verdiano Daniel dos Santos ("Amílcar Cabral: um outro olhar", Lisboa, Chiado Editora, 2014).  

[ Condensação / negritos: LG]
_________

Notas do editor:

 (*) Vd. postes de 


29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 7 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24044: Notas de leitura (1551): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - Parte I - Talvez "o maior mistério da absurda e inútil guerra colonial"... (Luís Graça)

Último poste da série "Notas de leitura": 13 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24062: Notas de leitura (1554): Uma safra de leituras, sábado na Feira da Ladra, em tempos de pandemia (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
"A Crónica da Libertação" é uma narrativa que o Presidente Luís Cabral, preso na Fortaleza da Amura, foi esboçando, com recurso a memórias. Liberto, teve alguns apoios e esclarecimentos sobre os factos descritos, ele fizera a sua narrativa sem qualquer documentação. Daí o texto, hoje obrigatório para o estudo da luta armada não ter rigor na sequência histórica, nomeadamente quanto ao período que está aqui a ser analisado, entre 1964 e até princípios de 1966.
A despeito destas lacunas, Luís Cabral evidencia a estratégia gizada para o Sul que, diz ele, ultrapassou todas as expetativas postas por Amílcar Cabral, quer quanto ao vigor da desarticulação como quanto à possibilidade de abrir ligações e canais de abastecimento entre a República da Guiné e um conjunto de bases que permitiram a implementação do PAIGC apoiado por populações no Sul e junto do Corubal, acrescentando-se a esses sucessos de 1963/1964 a região do Morés.
Releva a chegada do armamento pelo canal marroquino e as armas e demais material soviético que começa a chegar em grandes quantidades ao porto de Conacri, já em 1964.
É uma escrita de cunho vitorioso em que o acento tónico é posto na profunda admiração de Luís Cabral sobre o seu irmão.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (46)

Beja Santos

“Muito tempo eu andei
com um braço engessado.
De ter a mania de palhaçar,
tive este mau olhado.

Sargento Pedro me convidou
para ir ginástica treinar
e um dia fomos falar
com quem o treino organizou.
O Isaac não rejeitou
e nesse dia comecei.
Umas sapatilhas calcei
e vesti também um calção,
e efectuando a instrução
muito tempo eu lá andei.

A 16 de Abril, a praticar
no Benfica de Bissau,
o caso esteve muito mau.
Quando um pulo fui jogar,
entrou comigo o azar,
caindo desequilibrado.
No chão fiquei deitado,
e alguns gemidos lançava
e ao fim de dias andava
com um braço engessado.

Para o tratamento fazer
na Amura eu fiquei
e todo o tempo andei
sem o braço poder mexer.
Mal podia escrever:
para a família não duvidar
tinha osso fora do lugar
que o braço não endireitava
e só assim eu deixava
de ter a mania de palhaçar.

Os médicos me receitaram
supositórios para tomar
e ondas curtas ia levar.
Mas com isso não me curaram.
Muitos dias se passaram
e o osso continua rachado.
Talvez seja ainda operado
mas não sei quando é
pois na Província da Guiné
tive este mau resultado.”

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Deixemos o bardo em paz com os seus trambolhões, de braço ao peito. Continua de pé esta necessidade de dar amplitude à compreensão da guerra em que o BCAV 490 este envolvido, muitas vozes se têm alevantado para contar o rol de peripécias do que foi aquela luta pela independência, como vimos o rol é mais minguado no que tange a tornar compreensível a reação das forças portuguesas. A um desequilíbrio notório no volume das vozes, há que fazer o desconto a omissões e ao som estereofónico da propaganda. Manda a elementar justiça que o contraditório esteja sempre em cima da mesa, e é com essa preocupação que se releva agora um depoimento de quem acompanhou muito de perto Amílcar Cabral, o seu irmão Luís escreveu a “Crónica da Libertação”, publicada em Portugal em 1984. Deposto pelo golpe de 14 de novembro de 1980, preso e acusado da mais alvar tirania, Luís Cabral entendeu responder refugiando-se na história do PAIGC por via da ação e do pensamento de quem tudo inspirou, por toda a crónica é sempre o líder fundador quem está no palco. Veja-se resumidamente o que ele nos diz de 1962 até aproximadamente ao tempo em que teve termo a comissão do BCAV 490.

Em 3 de agosto de 1961, o PAIGC decretara a passagem à ação direta. Em outubro desse ano, Amílcar Cabral assinava uma carta aberta ao governo português, propunha negociações, sabendo de antemão que não ia obter resposta, ao tempo Rafael Barbosa e o seu núcleo iam sensibilizando a população de Bissau, a PIDE, que vira os seus efetivos aumentados, assaltou a base clandestina do bairro de Cobornel, Rafael Barbosa e outros dirigentes foram presos, deu-se a detenção de mais de mil militantes e simpatizantes. Vindos da formação da China, um punhado de guerrilheiros avança em direção ao Sul e à região de Morés. O armamento é frágil, Osvaldo Vieira, completamente cercado no Morés, teve que fugir para o Senegal, onde foram presos pelas autoridades e conduzidos a Dakar, o que obrigou a nova intervenção de Cabral. Tudo era difícil para a subversão. Tentara-se ingloriamente um levantamento no Gabú, os guerrilheiros tiveram que fugir precipitadamente. No Sul, Vitorino Costa é capturado e morto. Como escreve Luís Cabral, a notícia da sua morte levou centenas de combatentes do Sul e do Centro-Sul a abandonarem as suas bases para aguardarem na fronteira a chegada das armas. Enquanto tudo isto se passa, Amílcar Cabral estreita o seu relacionamento com o MPLA em Conacri, lançam as bases de um movimento em prol da independência das colónias portuguesas. Assim nasceu a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, Mário de Andrade e Viriato da Cruz eram os representantes do MPLA e Marcelino dos Santos da FRELIMO, os escritórios da organização ficavam em Rabat. O reino de Marrocos cede armas que depois de algumas peripécias que podiam ter custado caro ao movimento liderado por Cabral, no final de 1962, começam a ser distribuídas pistolas-metralhadoras. Luís Cabral não data os acontecimentos, mas está inequivocamente demonstrado que mesmo antes das frentes estarem abastecidas de armas, já no segundo semestre de 1962 houvera importantes destruições de pontes e pontões e destruídas as fontes de comunicação. Ganhava-se experiência e criavam-se bases de guerrilha onde se acreditava que o inimigo só dificilmente lá podia chegar. Mas o quadro de repressão intimidava profundamente as populações.

Luís Cabral nos últimos anos de vida

E ele escreve:
“Com a chegada de armas automáticas – entre as quais a ‘patchanga’, com os seus carregadores de 72 balas, que era altamente temida pelo inimigo – tudo isso acabou. Começaram a surgir vastas regiões completamente libertadas, onde só imperava a autoridade do partido; organizaram-se nas tabancas os Comités do PAIGC, para o controlo da vida das populações e do abastecimento da guerrilha. Cada família era obrigada a ‘medir’ uma certa quantidade de arroz ou outro alimento, para a base mais próxima da tabanca. Os responsáveis muitas vezes obrigavam jovens a regressarem às suas casas porque o número de pessoas nas bases aumentava sem parar e era preciso garantir os trabalhos do campo e não despovoar as tabancas.
Centenas de homens vinham a diversos pontos da fronteira para carregar armas e munições: o entusiasmo dos combatentes era tão grande que alguns responsáveis escreviam ao Secretariado para afirmar que, com mais duas dezenas de pistolas-metralhadoras, seriam capazes de libertar toda a sua área. As forças colonialistas encontravam-se incapazes de reagir; foram surpreendidas pelo aparecimento de armas automáticas potentes em várias zonas do país e tiveram muitas baixas”.

Luís Cabral revela que Amílcar Cabral estava admirado de tudo estar tão bem. O que se estava a passar no Sul revelava-se surpreendente e Domingos Ramos enviou Abdulai Barry para o outro lado do Corubal, para a Mata de Fifioli. É nesta fase que em Samba Silate, não longe de Bambadinca, houve grande repressão depois de denúncia de jovens que estariam a frequentar as bases da guerrilha, havia na povoação uma missão católica e um padre de nacionalidade italiana, António Grillo, denunciou a violência cometida e foi expulso da Guiné. Formava-se um grupo de guerrilha na região do Xime, tentar-se-á durante toda a guerra destruir estas bases, em vão.

Escreve a Luís Cabral que do Morés a luta ia-se alargando ao longo de 1963 para a área de Biambi e dali até Canchungo (Teixeira Pinto). É neste período, em fins de 1963, que Luís Cabral visita pela primeira vez a zona do Quitafine, que fazia fronteira com a República da Guiné. Descreve esta viagem e o seu encontro em Cassaca com Manuel Saturnino Costa, que era irmão de Vitorino Costa. Segundo Cabral, a população do Quitafine tinha aderido massivamente à luta. É nessa altura que Luís Cabral se apercebe que havia situações anormais na vida da guerrilha, ninguém era muito explícito mas deduzia-se que havia jovens dirigentes que praticavam atos despóticos que intimidavam as populações. E assim germinou a ideia de fazer um encontro de dirigentes que ocorreu num local chamado Cassacá, a cerca de quinze quilómetros do Como, esse encontro decorreu em fevereiro, enquanto se combatia na ilha, como é sabido o encontro transformou-se em congresso, levou à reestruturação das forças armadas e à punição dos elementos criminosos.

Depois de algumas tiradas propagandísticas sobre os acontecimentos da batalha do Como, Cabral refere a consolidação do posicionamento do PAIGC no Sul, era uma área que compreendia os setores de Cubucaré, Quitafine, Balana e Como. Um cineasta de nome Mário Marret, por essa época, visitou as zonas onde o PAIGC era preponderante e recolheu o material sobre o primeiro documentário cinematográfico com o título “LALA QUEMA”, seria o primeiro instrumento de sensibilização da opinião pública internacional.

Entretanto, chega o apoio do armamento soviético, o equipamento para o exército altera-se profundamente e Luís Cabral relata a vida em Conacri, a reorganização administrativa do partido no exílio, as visitas de Cabral às diferentes frentes, e a criação de um novo palco de guerra no Boé. Cabral dá igualmente conta da continuação de tensões com outros partidos políticos rivais, desta vez em Dacar. E descreve a formação dos quadros, a abertura de escolas, a criação de pessoal na área da Saúde, é o que ele vai esmiuçar num capítulo intitulado “Criar uma vida nova em cada parcela libertada”. Por razões que seguramente se prendem com a falta de documentação, dado que esta crónica foi escrita na prisão, dá alguns saltos bruscos em termos cronológicos, fala-se dos bombardeamentos na área do Morés, a aprovação da Lei da Justiça Militar, a expansão da frente de Leste, a morte de Domingos Ramos em Madina do Boé, a formação de quadros cabo-verdianos em Cuba, enfim, está literalmente a diluir-se a cronologia dos acontecimentos, ganha uma certa opacidade a evolução militar entre 1964 e 1965.
É talvez por isso desejável fazer-se recurso de novo à tese de doutoramento de Leopoldo Amado que seguiu metodicamente as vicissitudes do calendário.

Chico Mendes (Chico Té), depois da morte de Domingos Ramos era comandante da região do Boé

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 17 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20660: Notas de leitura (1265): Dicionário de Paixões, por João de Melo; Dom Quixote, 1994 (Mário Beja Santos)